As políticas do INEP/MEC, no contexto brasileiro dos anos 1950/1960*

Ana Waleska P. C. Mendonça

Resumo

O trabalho se remete à pesquisa: O INEP no contexto das políticas públicas do MEC, nos anos 1950/1960, ora em fase de conclusão, financiada pelo CNPq e que envolve um grupo de professores e alunos de pós-graduação e graduação de diferentes instituições universitárias do Rio de Janeiro. Criado em 1937, desde as suas origens, o INEP possui um estatuto institucional ambíguo, constituindo-se em um órgão de pesquisa, que tem, simultaneamente, atribuições executivas. Ao assumir a sua direção, em 1952, Anísio Teixeira propõe-se a dinamizar o órgão, com vistas a transformá-lo num centro de referência para o magistério nacional e a constituí-lo em um polo de articulação e renovação do Sistema Nacional de Educação. Pragmatismo e desenvolvimentismo, numa combinação peculiar, informavam as principais estratégias do órgão, que compreendiam não só pesquisas para subsidiar as políticas públicas, como publicações e escolas experimentais a ele vinculadas, que se constituíam, igualmente, em centros de treinamento de professores. Para concretizar tal projeto, Anísio Teixeira criou, no interior do INEP, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), ao qual se articulavam cinco Centros Regionais estrategicamente localizados, constituindo uma rede duplamente articulada, com universidades públicas e com as secretarias de educação, mas, ao mesmo tempo, gozando de bastante autonomia com relação à burocracia estatal. A pesquisa tem como fontes principais a documentação existente no arquivo privado de Anísio Teixeira, que inclui documentação oficial, correspondência e produção intelectual, impressos, como a revista publicada pelo órgão e jornais da época, as publicações do CBPE e a literatura sociológica dos anos 50/60, com ênfase na produção do ISEB.

Palavras-chave: INEP/MEC – Anísio Teixeira – anos 1950/1960

Abstract

This paper reports on the research project entitled “The INEP in the context of the MEC’s public policies in the 1950s and 1960s”, which is financed by the CNPq. The research group is comprised of professors and postgraduate and graduate students from different universities in Rio de Janeiro. Created in 1937, the INEP, since its origins, has had an ambiguous institutional status, as a research institution that has simultaneous executive attributions. On becoming its director, in 1952, Anísio Teixeira proposed a reform of the institution, with the intention of transforming it into a centre of reference for the teaching profession, as well as a pole for the articulation and renovation of the National Educational System. Pragmatism and developmentalism were the basis for the institution’s principal strategies, which included not only research that would inform public policies, but also publications and experimental schools, which would also function as centres for teacher training. In order to concretise such a project, Anísio Teixeira created, within the INEP, the Brazilian Centre for Educational Research (CBPE), to which five Regional Centres were also linked, constituting a web articulated with public universities and secretariats of education but, at the same time, enjoying a large degree of autonomy in relation to the State bureaucracy. This research used existing documents in Anísio Teixeira’s private archives as its principal source, such as the journal published by the institution, as well as newspapers of the period, publications of the CBPE and the sociological literature of the 1950s and 1960s.

Key-words: INEP/MEC – Anísio Teixeira – 1950s and 1960s years

Introdução

        O trabalho se remete à pesquisa: O INEP no contexto das políticas públicas do MEC, nos anos 1950/1960, ora em fase de conclusão, financiada pelo CNPq, e que envolve um grupo de professores e alunos de pós-graduação e graduação de diferentes instituições universitárias do Rio de Janeiro (a saber, PUC-Rio, UFRJ e UFF).
        A pesquisa vem se debruçando sobre a atuação deste órgão, à época intitulado Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos1 , e vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, durante a gestão do educador Anísio Teixeira (1952-1964), enfatizando as estratégias de intervenção do referido órgão nos sistemas de ensino.
        Trata-se de uma pesquisa que se situa no âmbito da história cultural e que se apoia nas seguintes categorias analíticas: campo (Bourdieu, 2001), projeto (Velho, 1994), estratégia (Certeau, 1994) e rede (Elias, 1994). Tem como fontes documentais básicas a documentação existente sobre o INEP no Arquivo Anísio Teixeira do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), as publicações do INEP/CBPE2 , aí incluídas a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a revista Educação e Ciências Sociais e o Boletim do CBPE, bem como o acervo remanescente da Biblioteca do CBPE, que se encontra no campus da UFRJ, alguns periódicos (jornais) editados à época no Rio de Janeiro, a documentação existente no PROEDES (Programa de Estudos Educação e Sociedade, da UFRJ), especialmente nos Arquivos de Anísio Teixeira, Roberto Moreira e Jayme Abreu e a literatura sociológica dos anos 1959/1960, com ênfase na produção do ISEB3 . Trabalha-se, portanto, com uma multiplicidade de fontes, que se procura cruzar, e que incluem documentos oficiais e privados, correspondência (oficial e particular) e impressos de diversas naturezas.
        O artigo está dividido em três partes. A primeira se propõe a traçar um rápido histórico do INEP, tentando particularmente apontar para o que estamos chamando de caráter ambíguo, ou melhor, híbrido do órgão, que nos parece ter se acentuado, durante a gestão de Anísio Teixeira. A segunda pretende analisar a filosofia que informava, à época, a atuação do órgão, chamando atenção para a peculiar relação que se estabeleceu no interior do INEP entre o pragmatismo deweyano e o ideário desenvolvimentista, verdadeiro idioma geral da época, usando-se aqui a feliz expressão cunhada por Darton (1992). Por fim, na terceira parte, busca-se explicitar as principais estratégias de intervenção do INEP nos sistemas de ensino, foco principal do nosso estudo.

1. O INEP: uma instituição híbrida

        O INEP foi criado em janeiro de 1937, por iniciativa de Gustavo Capanema, à época Ministro de Educação e Saúde (MES)4 , sob a denominação inicial de Instituto Nacional de Pedagogia. Apenas em 1938, no entanto, ele começa a ter existência real, sob a liderança do educador Lourenço Filho5 e já com a denominação de Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos6 .
        Múltiplos objetivos foram atribuídos ao INEP através do Decreto-Lei nº 580, de 30 de julho de 1938: organizar a documentação relativa à história e ao estudo atual das doutrinas e técnicas pedagógicas, bem como das diferentes espécies de instituições educativas; manter o intercâmbio em matéria de pedagogia com as instituições educacionais do país e do estrangeiro; promover inquéritos e pesquisas sobre todos os problemas atinentes às instituições educacionais do país e do estrangeiro; promover investigação no terreno da psicologia aplicada à educação, bem como relativamente aos problemas de orientação e seleção profissional; prestar assistência técnica aos serviços estaduais, municipais e particulares de educação, ministrando-lhes, mediante consulta ou independentemente desta, esclarecimentos e soluções sobre os problemas pedagógicos; divulgar, pelos diferentes processos de difusão, os conhecimentos relativos à teoria e à prática pedagógica.
        Importa destacar a esse respeito, que o INEP nasce com atribuições de natureza diferentes, voltadas, por um lado, para o desenvolvimento de estudos e pesquisas no campo da educação - visando, entre outras coisas subsidiar as políticas desenvolvidas pelo Ministério - e, por outro, atribuições de caráter executivo, como prestar assistência técnica aos sistemas estaduais municipais e particulares, além do objetivo de divulgação, por diferentes meios de difusão, do conhecimento pedagógico. Desde as suas origens, portanto, o INEP possui um estatuto institucional ambíguo, constituindo-se em um órgão de pesquisa, que tem, simultaneamente, atribuições executivas.
        Segundo Mariani (1982), os dois principais obstáculos que se colocam, desde o início, para a atuação deste órgão se constituem, por um lado, na falta de pessoal especializado, e, por outro, na rigidez das normas da burocracia estatal. Quanto ao primeiro aspecto, é bom lembrar que, em 1939, quando se cria o curso de Pedagogia no interior da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, um dos objetivos que se atribui a esse curso é a formação dos chamados técnicos de educação, que deveriam desempenhar as tarefas especializadas no âmbito dos órgãos da burocracia estatal e particularmente do Ministério da Educação. Mas o encaminhamento dessa questão se mostra complicado e o MES realiza, ainda em 1939, um primeiro e único concurso de títulos e provas para constituir o núcleo da carreira de técnicos da educação recém-criada7 , predominando, a partir daí, os critérios de apadrinhamento político no preenchimento dos cargos técnicos, de acordo com a tradição patrimonialista que marca até hoje a nossa administração pública. A esse problema alia-se a questão da própria rigidez das normas da burocracia estatal, lembrando que essa burocracia está sendo montada nesse momento: o MES foi criado em 1930 e passava por uma reorganização administrativa, em grande parte informada pelo espírito do chamado Estado Novo8 . Trata-se, então, de uma burocracia fortemente centralizada e extremamente rígida. De qualquer forma, importa assinalar que, na fala das pessoas que integraram os quadros técnicos do INEP, essas duas questões aparecem sistematicamente como os principais obstáculos para que o órgão desempenhasse adequadamente as suas funções: a falta de pessoal especializado e a rigidez da burocracia estatal.
        Apesar destas dificuldades, Lourenço Filho, que permaneceu à frente do órgão até 1945, consegue desenvolver uma série de iniciativas. Ele implanta de fato o órgão: organiza uma biblioteca pedagógica, um serviço de documentação sobre a legislação educacional brasileira, cria em 1941 a Revista Brasileira de Educação, que é editada até hoje, que vai divulgar inclusive, não só os estudos e pesquisas desenvolvidas pelo INEP, mas também o pensamento pedagógico internacional, e realiza uma série de inquéritos e estudos sobre a organização do ensino primário e normal nos estados. Organiza também uma documentação de caráter histórico, desenvolve uma série de levantamentos bibliográficos, além de promover diversas publicações de caráter técnico. Segundo Mariani (opus cit), grande parte do quadro técnico do INEP acaba, no entanto, por se dedicar à implantação de um Fundo Nacional do Ensino Primário, cuja organização se propunha por iniciativa do próprio Ministério e que deveria definir, na verdade, a origem dos recursos que seriam investidos pelo governo federal no ensino primário e os critérios para a sua aplicação, na direção do caráter híbrido que marca o órgão desde a sua fundação, como se assinalou acima.
        Desta perspectiva, outra questão que se colocava para o órgão, era a da sua relação com o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), com quem aquele deveria cooperar, não só por meio de estudos, mas também por meio de providências executivas nos trabalhos de seleção, aperfeiçoamento, especialização e readaptação do funcionalismo da União (apud Lourenço Filho, 1964, p. 12). Foi por essa razão que, não só o INEP mantinha um Serviço de Biometria Médica, como também este era um serviço superdimensionado, chegando a abranger, segundo relatório de atividades do ano de 1944, 73,86% dos funcionários lotados no órgão (CPDOC/FGV, 1945:8). Dantas (2001), particularmente, refere-se à resistência de Lourenço Filho em assumir as atribuições vinculadas ao DASP.
        Em 1945, com a chamada redemocratização do país, Lourenço Filho vai ser substituído por Murilo Braga de Carvalho que permanece à frente do INEP até 1952, quando falece em um desastre de avião. A este respeito, cumpre assinalar uma das características do órgão ao longo do período a que nos referimos (1938-1964), que é a surpreendente estabilidade dos seus diretores, fator que se constituiu, sem dúvida, em garantia da continuidade do trabalho desenvolvido pelo órgão durante longos períodos de tempo. Da sua fundação até 1964, o INEP teve apenas três diretores: Lourenço Filho (1938-1945), Murilo Braga de Carvalho (1945-1952) e Anísio Teixeira (1952-1964), que sobreviveram, no caso dos dois últimos, a constantes mudanças de Ministro, bem como a graves crises institucionais do país.
        Ainda de acordo com Mariani (opus cit), durante a gestão de Murilo Braga de Carvalho, o INEP perde quase que totalmente o seu caráter de um instituto de pesquisas, entre outras razões, pela absorção das tarefas da Diretoria do Ensino Primário e Normal, extinta a essa época. É interessante notar que, se, por um lado, o INEP nasce no contexto do Estado Novo e, apesar das características que marcam esse período, consegue um certo espaço de autonomia, o que acontece contraditoriamente a partir de 1945 é que ele se submete às exigências da burocracia estatal e se descaracteriza enquanto um órgão de pesquisa.
        Importa destacar que, ao nosso ver, o caráter híbrido do INEP não tem necessariamente um significado negativo; há, sem dúvida, o aspecto de uma certa indefinição do órgão, mas é nossa hipótese de trabalho que, durante a gestão de Anísio Teixeira, ele vai explorar, de maneira produtiva, essa ambigüidade, transformando o INEP numa espécie de mini-ministério no interior do próprio Ministério. Esta seria, justamente, uma das razões pelas quais Anísio Teixeira vai conseguir com que o órgão tenha o papel e o significado central que acabou assumindo no âmbito do MEC, durante a sua gestão.
        Anísio Teixeira assume o INEP, em 1952, após ter sido chamado, no ano anterior, pelo então Ministro da Educação Ernesto Simões Filho, para organizar a CAPES – inicialmente, Campanha de Aperfeiçoamento de Nível Superior, atual Fundação – responsável pela institucionalização da Pós-Graduação no país, e que terá, num primeiro momento, o próprio INEP como seu órgão executivo. Chamado, portanto, para substituir Murilo Braga de Carvalho, Anísio Teixeira passa a acumular estas duas funções, sendo, simultaneamente, o Secretário Geral da CAPES e o Diretor do INEP, situação que persiste até 1964.
        Desde o início, Anísio Teixeira assume o INEP com uma intenção bastante clara de dinamizar o órgão. Essa intenção aparece explicitada não só no discurso que este pronuncia quando toma posse no cargo de diretor, mas particularmente numa entrevista que concede a jornal, na época, e em que afirma:

as funções do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverão ganhar amplitude maior, buscando tornar-se tanto quanto possível, o centro de inspiração do magistério nacional, para a formação daquela consciência educacional comum que mais do que qualquer outra força deverá dirigir e orientar a escola brasileira. Os estudos do INEP deverão ajudar a eclosão desse movimento da consciência nacional, indispensável à reconstrução escolar (apud Mariani, opus cit,: 174).

        Esta frase resume bem o que Anísio Teixeira estava se propondo com a tentativa de dinamização do INEP, ou seja, fazer do INEP um centro de inspiração do magistério nacional, buscando formar a consciência educacional comum que para ele seria absolutamente indispensável para o processo de reconstrução da escola9 . Esta é a meta que vai informar as principais estratégias que o órgão vai assumir, durante a sua gestão.

2. O INEP como foco de difusão do ideário pragmatista

        A pesquisa permitiu-nos evidenciar que, ao longo dos anos em estudo e sob a direção de Anísio Teixeira, principal expoente do pragmatismo deweyano entre nós, o INEP constituiu-se em um foco de difusão deste ideário, difusão esta que se fazia não só através das inúmeras publicações (inclusive didáticas), e dos cursos e conferências que o órgão promovia, mas também das escolas experimentais a ele vinculadas, que se propunham a desenvolver experiências pedagógicas fundamentadas na filosofia educacional de Dewey.
        O pragmatismo se combinava de maneira bastante peculiar com o ideário desenvolvimentista, a tal ponto que se pode afirmar, a nosso ver, que o desenvolvimentismo se constituiu em um solo fértil para a retomada e a expansão do pragmatismo no Brasil.
        Cumpre ressaltar o contexto especialmente polêmico em que se deu, a esta época, a apropriação do pragmatismo deweyano entre nós, situado no cerne de uma dupla polêmica, que tinha uma dimensão internacional e uma dimensão nacional, que, apesar de imbricadas, guardavam a sua especificidade. Nos Estados Unidos, no contexto da chamada “guerra fria”, o pragmatismo vinha sendo fortemente criticado à direita e à esquerda, pelos seus pretensos efeitos sobre a educação norte-americana em situação de “crise”. Ecos dessa polêmica chegavam até nós. Por outro lado, no Brasil, o pragmatismo de Dewey, acusado de materialista e até socialista e revolucionário, seria uma das justificativas para o intenso ataque da hierarquia católica a Anísio Teixeira, que quase custou a sua demissão, solicitada ao então presidente: Juscelino Kubistcheck..
        De uma forma geral, pode-se afirmar que a apropriação que se fazia do pragmatismo deweyano, no âmbito do INEP, se dava numa tripla perspectiva: como “método científico”, implicando em uma determinada concepção de ciência, particularmente das ciências sociais, com ênfase na aplicação do conhecimento científico na solução dos problemas de ordem prática, como “modo de vida democrático”, e como sinônimo de “experimentalismo”, no âmbito da escola. Nessas duas primeiras perspectivas, o pragmatismo informou as tentativas de racionalização do sistema escolar, através de uma concepção peculiar de planejamento, que se fundamentava nos estudos de comunidade e que supunha o esclarecimento da população atingida, a fim de garantir a sua aceitação e continuidade. Na última perspectiva, a escola progressiva (experimental e não dualista) era percebida como a única capaz de se constituir em um agente de mudança cultural, e, consequentemente, contribuir para a formação de uma consciência comum favorável ao desenvolvimento nacional. Deste ponto de vista, a transformação da escola, para ajustá-la às novas condições do país (determinadas principalmente pelo avanço do processo de industrialização) e para consolidar o funcionamento da democracia liberal, constituía-se em condição indispensável do pleno desenvolvimento.
        Desta perspectiva, foi possível perceber uma aproximação entre o pragmatismo que informava a atuação do INEP e a ideologia desenvolvimentista, particularmente aquela elaborada no interior do ISEB, órgão também ligado ao MEC, que, como já se disse anteriormente, foi um dos núcleos mais importantes de difusão da ideologia nacional-desenvolvimentista que perpassou grande parte das políticas governamentais implementadas à época (mesmo que de forma freqüentemente contraditória). Esta aproximação se fazia através de um conjunto de idéias partilhadas pelos intelectuais que se articulavam em torno aos dois núcleos, tais como a idéia de “transplantação cultural” aplicada à análise da situação cultural e institucional do país, a perspectiva faseológica na maneira de se abordar o processo de desenvolvimento econômico e social, a concepção de história, particularmente da história do Brasil, e o uso que se fazia dela (a “história que não deu certo” e que precisa ser superada por uma “outra história” que se pretende construir, numa perspectiva marcadamente voluntarista), a visão da escola como agente de mudança cultural, a concepção de ciência, particularmente das ciências sociais e do seu papel no processo de desenvolvimento nacional, e a necessidade da formação de uma consciência nacional propícia ao desenvolvimento do país.

3. As estratégias de intervenção nos sistemas de ensino

        Anísio Teixeira, como já se destacou anteriormente, assume o INEP com uma intenção bastante clara de dinamizar o órgão e começa, desde logo, a desenvolver uma série de estratégias que tinham o objetivo claro de contornar algumas das principais dificuldades que emperravam a sua atuação: a falta de pessoal especializado e a inércia da burocracia estatal.
        A primeira estratégia adotada vai ser a criação de duas Campanhas10 , respectivamente a CILEME e a CALDEME. A primeira delas se propunha a fazer um amplo levantamento da situação do ensino médio no país, pondo ênfase na sua dimensão qualitativa (quais os seus objetivos, as expectativas daqueles que o procuravam, etc.) Para Anísio Teixeira, a questão do ensino médio era o verdadeiro nó do sistema educacional brasileiro e uma de suas principais bandeiras era integrá-lo ao ensino primário, no que ele considerava a escola comum, básica na formação de qualquer cidadão brasileiro. A segunda campanha estava voltada para a produção de material didático de boa qualidade, e, com esse objetivo, foram contratados professores renomados das diferentes áreas de especialização. É através dessas campanhas que Anísio Teixeira começa a imprimir a sua marca no INEP.
        O depoimento de uma das colaboradoras de Anísio Teixeira a essa época, Elza Rodrigues Martins, transcrito por Mariani (opus cit.), chama a atenção para o papel que tiveram as comissões contratadas para essas campanhas:

Essas comissões permitiam a vinda de pessoal para a assessoria inclusive do estrangeiro, proporcionando uma autonomia que era impossível com os recursos habituais do Serviço Público, onde predominava a hegemonia dos setores meio sobre os serviços fins. (...) Anísio Teixeira foi o grande construtor de uma nova filosofia de trabalho em um órgão técnico como o INEP (p. 176).

        Era exatamente contra esse tipo de burocracia, em que as atividades meio se tornam hegemônicas sobre as atividades fins, que Anísio Teixeira se insurgia, não só criticando-a acerbamente nos seus escritos da época, como, na prática, buscando estratégias que o permitissem superá-la.
        Em fins de 1953, Anísio Teixeira organiza o Centro de Documentação Pedagógica, que deveria sistematizar os trabalhos desenvolvidos pelas campanhas, garantindo a documentação e a divulgação dos resultados obtidos e cria, igualmente, a Biblioteca Brasileira de Educação. Por essa época também, já começa a gestar o Centro de Altos Estudos Educacionais que vai estar na origem do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), iniciativa que acaba se viabilizando com o apoio da UNESCO. A sua criação é exemplificativa da capacidade que tinha Anísio Teixeira de aproveitar os recursos disponíveis, de explorar as possibilidades existentes. O CBPE foi criado utilizando-se uma verba da UNESCO, originariamente destinada a um programa de formação de agentes para educação rural. Anísio Teixeira redireciona essa verba e é com ela que acaba conseguindo viabilizar a criação do Centro.
        Xavier (1999) chama atenção para o evidente paralelismo entre as duas denominações: INEP e CBPE. Na verdade, o Centro se configurou como um verdadeiro INEP dentro do INEP e a estratégia de sua criação se situa na linha da administração paralela, que marca a administração pública deste período, particularmente durante o governo Juscelino Kubistcheck. Constituiu-se, desta forma, na nossa perspectiva, em uma maneira de escapar da burocratização do INEP, garantindo uma maior flexibilidade na contratação de pessoal especializado, um intercâmbio mais autônomo com entidades internacionais, e permitindo, igualmente, uma maior oxigenação de idéias.
        É de fato com a criação do CBPE que Anísio Teixeira transforma o INEP em uma espécie de um cérebro pensante do Ministério, um verdadeiro ministério dentro do Ministério, como já se disse, de onde partiam propostas de intervenção sobre o sistema de ensino, fundamentadas nas pesquisas de ponta desenvolvidas sob o seu patrocínio e nas experiências que vão ser promovidas pelo próprio Centro e pelos Centros Regionais de Pesquisas a ele articulados. Aliás, quando Anísio Teixeira organiza o CBPE, ele cria, simultaneamente, uma rede a ele articulada, que são os Centros Regionais de Pesquisa Educacional localizados em algumas capitais estrategicamente distribuídas pelo país, a saber: Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife e São Paulo, além do Centro nacional que funcionava no Rio de Janeiro. Todos esses Centros, por sua vez, vão buscar uma articulação, por um lado, com a universidade pública, no caso as universidades federais localizadas nas capitais e a Universidade de São Paulo, e, por outro, com as Secretarias de Educação. O próprio decreto de criação11 do CBPE constitui também os Centros Regionais a ele articulados. Desta forma, Anísio Teixeira constrói uma rede que permite que o CBPE e, portanto, o INEP, tenha uma interferência no âmbito do país como um todo. Aliás, cumpre ressaltar a esse respeito que a regionalização é, sem dúvida, uma das outras estratégias que marcam a atuação do órgão.
        O CBPE viria a incorporar as antigas campanhas e passa, efetivamente, a centralizar a atuação do INEP. É significativo, por exemplo, destacar que, em um extenso Relatório Qüinqüenal do MEC, referente ao período 1956-1960 e encaminhado ao Presidente Juscelino Kubitschek pelo Ministro Clóvis Salgado, o INEP enquanto tal não aparece no corpo do relatório (embora se faça menção ao Instituto e ao seu diretor entre os órgãos listados), mas descrevem-se detalhadamente as atividades do CBPE e de cada um dos Centros Regionais a ele articulados.
        Em que direção se desenvolvem as iniciativas do INEP/CBPE de intervenção nos sistemas de ensino? Pode-se afirmar, em linhas gerais, que esta intervenção se dava através de três tipos de iniciativas: uma política editorial que incluía a publicação tanto de textos didáticos, quanto de livros voltados para a análise e interpretação dos problemas brasileiros, com ênfase no conhecimento da situação educacional, entre os quais se incluem alguns livros que são hoje considerados clássicos do campo da sociologia, como Os dois Brasís, de Jacques Lambert, ou da pesquisa educacional, como A Escola Primária Metropolitana, de Luiz Pereira, e Professoras de Amanhã, de Aparecida Joly Gouveia (livros que se originaram, aliás, de pesquisas desenvolvidas pelo próprio CBPE); as escolas experimentais, vinculadas aos Centros Regionais de Pesquisa e os cursos de formação de professores e especialistas. Cumpre destacar que as escolas experimentais vinculadas aos centros se configuravam duplamente como escolas de experimentação e como espaço de formação de professores, abrigando vários destes cursos, como é o caso, por exemplo, da Escola Parque da Bahia e da Escola Guatemala, no Rio de Janeiro.
        Cumpre, aliás, destacar, finalizando o trabalho, que dois desdobramentos significativos da pesquisa se constituíram na organização de um Catálogo dos livros editados pelo CBPE/INEP/MEC, entre 1955 e 1965, a partir do acervo bibliográfico do Espaço Anísio Teixeira, situado no Campus da Praia Vermelha da UFRJ e que abriga parte do acervo da antiga Biblioteca do CBPE e uma monografia sobre a Escola Guatemala elaborada por Cecília Neves Lima, aluna do curso de graduação em Pedagogia da UFRJ, à época, e que integrava o grupo de pesquisa. No primeiro caso, foi possível localizar e traçar uma primeira caracterização de 52 das 62 obras publicadas ao longo do período estabelecido. No segundo caso, a partir de documentação levantada no CPDOC e no arquivo da ABE12 , foi possível caracterizar a Escola Guatemala, enquanto o 1º Centro experimental de Educação Primária do INEP, evidenciando-se, com clareza, esta sua dupla configuração, de centro de experimentação pedagógica e de centro de treinamento de professores.
        Aliás, um dos últimos projetos que se pretendia desenvolver a partir do INEP, era, exatamente, um projeto extremamente ambicioso de constituição, por todo o país, de 40 centros regionais de treinamento de professores, que se chegou a incluir no Plano Nacional de Educação elaborado pelo Conselho Federal de Educação e em cuja elaboração o diretor do INEP teve uma participação decisiva. Alguns destes centros chegaram a ser constituídos. Na verdade, propunha-se que os próprios centros regionais, com suas escolas e classes experimentais anexas, se configurassem como tais. Pudemos, aliás, constatar que este projeto já aparece na documentação inicial do INEP, logo que Anísio Teixeira assume a sua direção, o que seria coerente com os objetivos por ele atribuídos ao referido órgão.
        Todo o trabalho do CBPE, particularmente, e, em consequência, do INEP como um todo, vai sofrer uma descontinuidade, sob o impacto da situação política que culminou com o golpe militar de 1964. Do ponto de vista da pesquisa, o Centro já começa a sofrer um certo esvaziamento, a partir de 1960, no momento em que Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, diretor do Departamento de Pesquisas Sociais à época, se envolvem com o projeto da Universidade de Brasília13 . Aliás, Anísio acaba por transferir-se para Brasília. Mas o impacto mais forte é, sem sombra de dúvida, o do golpe de 1964. Demitido Anísio Teixeira de todos os cargos que ocupava, a bem do serviço público, o CBPE sobrevive ainda alguns anos, bastante descaracterizado, e os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais vão aos poucos sendo fechados. Toda a estrutura montada, ao longo da gestão de Anísio Teixeira à frente do INEP, vai ser, portanto, destruída.
        Uma última observação, a esse respeito, merece ser feita. Em 8 de novembro de 1962, durante a rápida passagem de Darcy Ribeiro pela pasta da Educação, este encaminha ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei14 , aprovado pelo Conselho de Ministros, que dispunha sobre a reorganização do Ministério da Educação. Este anteprojeto estabelecia que o Ministério da Educação passaria a denominar-se Ministério da Educação, Ciência e Cultura (MECC), de forma a adequar-se às novas atribuições que lhe tinham sido conferidas pela Lei nº 4.024/61. Na reestruturação proposta, o INEP se transformava no órgão geral federal de planejamento do MECC e do estudo, pesquisa, experimentação e documentação educacional, integrado por cinco departamentos e centros, a saber: o Departamento do Plano Nacional de Educação, o Departamento Nacional de Estatística e Documentação Educacional, o Departamento Nacional de Relações com Organismos Internacionais e Estrangeiros, o Centro Nacional de Pesquisas e Planejamento Educacional e os Centros Regionais de Pesquisas e Planejamento Educacional, com sede nas cidades de Belém, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. O presidente do INEP, juntamente com os Secretários Gerais da Educação, da Ciência, da Cultura e da Administração, cargos que também se criavam, com as respectivas secretarias, constituiriam, sob a presidência do Ministro, a Mesa Coordenadora do MECC, órgão de integração e unificação das suas atividades, dentro do princípio de trabalho em equipe que se adotava, ao lado do princípio de planejamento, como os dois princípios essenciais à atualização e eficiência do ministério e que norteavam todo o seu processo de reorganização. A proposta não chegou a ser aprovada e não conseguimos saber muita coisa a respeito da sua trajetória. De qualquer forma, o que nos parece interessante é a centralidade atribuída ao INEP, no contexto desta proposta, e o fato de que, na nossa perspectiva, ela formalizava uma posição que o órgão já vinha, na prática, assumindo.

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NOTAS
*Este texto se origina de trabalho apresentado no VII Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana, realizado em Quito, Equador, de 13 a 16/09/2005. Uma versão um pouco mais completa, elaborada em conjunto com Libânia Nacif Xavier, será publicada na revista eletrônica da UFRJ, sob o título: O INEP no contexto das políticas do MEC (1950-1960).
1O INEP se denomina atualmente Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, tendo recebido essa última denominação em homenagem ao educador, falecido em 1971, por ocasião das comemorações do seu centenário de nascimento.
2O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), do qual se falará a seguir, foi um órgão criado em 1955, no próprio interior do INEP, ao qual se articulava toda uma rede de centros regionais, localizados em algumas das principais capitais dos estados brasileiros.
3Instituto Superior de Estudos Brasileiros, órgão criado em 1955, também vinculado ao MEC e que assumiu papel de referência na formulação do ideário desenvolvimentista que predominou no país, ao longo dos anos em estudo.
4Em 1955, o Ministério da Educação e Saude foi subdividido em dois ministérios que passaram a denominar-se, respectivamente, Ministério da Educação e Cultura e Ministério da Saúde.
5Tanto Lourenço Filho quanto Anísio Teixeira foram educadores vinculados ao Movimento da Escola Nova no Brasil, que tiveram uma longa vida pública, tendo ocupado cargos na administração pública da educação, tanto no âmbito nacional, quanto no âmbito de alguns estados brasileiros.
6A Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, que reorganizava o Ministério da Educação e Saúde previa a criação do Instituto Nacional de Pedagogia. No entanto, a instalação do referido órgão não aconteceu de imediato, por conta de problemas internos do próprio Ministério, além das dificuldades causadas pelo golpe que implantou, no Brasil, o Estado Novo. A esse respeito, cumpre destacar que a própria permanência de Gustavo Capanema à frente do Ministério se viu ameaçada. O Instituto, já com a nova denominação e as atribuições ampliadas, só entrou em funcionamento de fato no ano seguinte, por força de legislação complementar.
7A esse respeito lembra Lourenço Filho (1964), que nove dos candidatos aprovados no concurso foram lotados no INEP, quatro dos quais como chefes das seções técnicas, utilizando-se como critério o aproveitamento dos primeiros classificados, entre eles, Murilo Braga de Carvalho que seria depois diretor do órgão.
8Regime de inspiração fascista que vigorou no Brasil, em decorrência de um golpe de Estado, entre 1937 e 1945.
9Importa destacar a preferência de Anísio Teixeira pelo termo reconstrução da escola, ao invés de reforma, quando o primeiro termo poderia parecer até anacrônico nesta época. Na nossa perspectiva, essa preferência tem a ver com a idéia que o educador expressava de que o que era necessário, no momento, para renovar a escola brasileira, não era mais uma reforma (o termo reforma indicando sempre alguma coisa de caráter episódico), mas desencadear no seu interior, um processo que permitisse a ela continuamente repensar-se e transformar-se. Seria desencadear esse processo de mudança e de transformação contínuo no interior da própria escola. E para ele esse processo só poderia acontecer se houvesse de fato um enorme investimento na formação do professor. Para Anísio Teixeira, o professor é a pedra de toque do processo de reconstrução da escola.
10As campanhas se constituíram em uma estratégia de ação bastante utilizada pelo MEC, ao longo dos anos em estudo, para agilizar a atuação do órgão em áreas consideradas prioritárias.
11Decreto nº 38.460, de 28 de dezembro de 1955.
12Associação Brasileira de Educação, entidade criada em 1924, e que, a partir dos anos 1930, constituiu-se no espaço aglutinador dos intelectuais vinculados ao Movimento da Escola Nova.
13Embora, de início, resistente à idéia da nova capital e, posteriormente, da criação de uma universidade em Brasília, Anísio Teixeira envolveu-se de corpo e alma com esta Universidade, tendo, inclusive, acabado por assumir a sua reitoria, em substituição a Darcy Ribeiro, cargo que acumulava com os demais já referidos, no momento da sua demissão do serviço público. Anísio Teixeira foi também o responsável pelo projeto original de organização do sistema escolar de Brasília.
14O texto desse anteprojeto, com a correspondente justificação, foi publicado no nº 88 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, de outubro-dezembro de 1962.